‘Epithalamium’ de Fernando Pessoa

 

Epitalâmio (do grego epithalámion – epi, sobre + thalamium, o tálamo, ou quarto nupcial), é um cântico nupcial de natureza religiosa, destinado a reivindicar para os noivos a bênção dos deuses, em especial de Himeneu, a divindade protetora dos enlaces matrimoniais.

Fernando Pessoa

Tradução baseada em:

http://www.cfh.ufsc.br/~magno/

 

EPITHALAMIUM

I

Abram-se as janelas e que entre o dia

Como um mar de ruído!

Nem reste um canto de vã sombra a compelir

Pensares noturnos, ou contar

Ao cotejo da mente que há coisas tão tristes

Neste dia de tanta alegria.

É manhã, manhã aberta, o pleno Sol

Ascendeu do abismo

Onde à noite esteve além do inviso arco

Do horizonte fosco.

Vai despertando a noiva. Eis!

Começa a sentir que entra o dia

Cuja noite tão logo fará dois diferentes corações

Bater tão perto quanto a carne o permitir.

Pensai quanto se alegra no temido ir-se,

Nem abre os olhos de medo de temer a alegria.

Já é a vinda dorida de toda a esperança.

Com tal pressentir ela nem sabe bem brincar.

Oh, deixai que espere um instante, um dia

P’ra dispor-se a esta luta

À qual seu pensar nem sempre se dispôs!

Vindo o dia realmente, está quase irada.

Se ela anela o que quer, assim mesmo fica.

Seus sonhos ‘inda imersos são

Na tarda margem do sono, que em vão

A precisa espera das coisas vagamente mancha.

 

II

Separai nas janelas as leves cortinas:

Desvelam mais que a luz omitem!

Olhai o extenso campo, quão brilhante jaz

Sob o amplo céu azul

Sem nuvens, e o começo do calor

Já faz quase mal à vista!

A noiva está acordando. Eis! Pressente o palpitar

Do coração enquanto acorda!

Seus seios são por frio receio contraídos,

Mais cientes de no seu desabrochar

Que mãos outras que as dela os tocarão

E terão lábios sorvendo as flóreas pontas.

Eis! Já as mãos-imagens do noivo sente

Tocar mesmo onde as dela se acanham,

E seu pensar se encolhe até a indistinção.

Ela soergue o corpo, deita-se contudo.

Vagamente deixa os olhos sentir-se abrindo.

Em franjada névoa cada coisa

Imerge, e o presente dia é mesmo claro

Menos ao seu senso-receio.

Qual matiz, luz lhe jaz sobre pálpebras,

E quase odeia a inevitável luz.

 

III

Abram janelas e as portas de todo.

Que nada da noite fique,

Ou, qual rasto de barco no mar, resista

Ao que a fez viver ali!

No leito fica, como à espera que o desejo

Cresça mais, audaz e fértil

Para erguê-la, ou tão tênue que expulse o medo,

E ela se erga como se comum fosse o dia.

Que se tornaria noiva na cama com homem

Suas partes de mulher insistem

E mandam acima mensagens que o pudor proíbe

Serem sonhadas salvo em vaga névoa.

Ela abre os olhos, o teto vê acima

Fechando a estreita alcova,

E pensa, tendo até que fechá-los de novo,

Que outro teto ela à noite verá,

Noutra casa, noutra cama, deitada

De um jeito que quase adivinha;

Então fecha os olhos para entrever o quarto

Que logo tão pouco verá.

 

 

IV

Deixai que a plena luz já transpasse a casa toda

Qual arauto co’a fronte

Em tais guirlandas de rosas e folhas

Que o amor por amor se tece!

Entre ela e o teto ao fim do dia

Um homem arqueará seu peso.

Vê! a esta ideia as pernas cruza, bem sabendo

Que mãos as virão separar;

Temendo este entrar nela, o consentir

Que fará ternura começar rude em dor.

Se sois, gaios raios de sol, habitados

Por espíritos ou gnomos que com o dia ludiam,

Soprai-lhe, caso se encolha à ideia de sangrar,

Que do amor à larga alcova tal porta estreita conduz.

 

V

Já lhe será a tumba da intacta virgindade

Cavada em pouco sangue.

Reuni-vos a este feliz funeral

E tecei a escarlate mortalha,

Oh anseios por carne viril

Que tanto lhe abrandaram as horas secretas

E levaram-lhe a mão querendo sem querer

Lá onde prazer irrompe.

Surgi, mínimos gnomos, bando turbulento

Que vem tão veloz que a transbordante taça entorna;

Vós que fazeis a juventude jovem e a carne encanto

E nascer alegre primavera e sol de verão;

Vós por cuja secreta presença árvores crescem

Verdes, e flores brotam, e aves cantam livres,

Quando na fúria de um tremulo ardor

O touro cobre a novilha vigoroso!

 

VI

Cantai-lhe à janela, sonoras asas matinais

Em cuja canção canta a Alegria!

Zuni em seu quarto enquanto se esvai seu sono,

Oh mosquinhas, tombai e rojai

Ao longo da coberta e em seus dedos

Em pares unidos. Ela deixa.

Entre as pernas juntas uma profecia

Sente deslizar como mão íntima.

Vede como ela tarda! Dizei-lhe: não tema o gozo!

Levanta! Acorda! Veste-te para o despir-se! De pé!

Olha como o sol é o inteiro Todo!

Vida te vibra junto ao claustro em pétalas dos sentidos.

Levanta! Levanta! Prazer te deve sobrevir!

É bom ser colhida, oh rosa ‘inda plantada!

 

VII

Já está de pé. Vede como olha abaixo,

Ao lento deslisar da camisola,

O seu momento de nudez pura

Salvo onde em sua alva feição, o contraste animal,

Negros pelos triangulando em baixo, envergonha

Vê-los hoje, até que a caricia

Da camisa cubra seu corpo. Veste-te!

Não pares, sentada à árdua borda da cama,

Não pares a indagar o vir-a-ser, a adivinhar!

Ouve as aves rápidas na beira da janela!

Levanta-te e lava-te! Eis! De pé, meio vestida

Pois lhe faltam mãos que os botões possam fechar

Da simbólica veste branca, assim a encontraram

Suas damas, que vieram enfeitá-la.

 

VIII

Vede como, sobre ela não vê-las, as jovens

Entre si sorriem o mesmo pensar dela!

Já está deflorada em outras mentes.

Com raro cuidado, em cerradas tranças,

E mãos que ao sol se movem em minúcias,

Dispõe-lhe uma os cabelos em belos laços.

Um’outra ajusta-lhe a veste; a mão

Tocando o corpóreo calor de vida, reata

Seu pensar à mão do noivo, que rude será.

A primeira, posta em névoa, sobre o véu

Pousa-lhe à cabeça, de lado a sua inclinando,

A grinalda, tão logo sem sentido.

A outra, de joelhos, faz os sapatos brancos

Se estreitarem aos trémulos pés e seus olhos veem

Na meia as pernas, e correm acima àquele bem

Onde todo este dia a folia centra.

 

IX

Já está toda vestida, sua face avançou

A um rubor. Vede como o Sol

Brilha ardente, como se insinua e devassa, se entesa

P’ra atingir o vidro quente!

Está toda branca, toda ela o espera.

Seus olhos brilham sombrios.

Suas mãos estão frias, seus lábios secos, seu seio

Arfa qual corça perseguida.

 

X

Agora ela surgiu. Escutai, todo o falar falece

E logo estala em nova onda de fala!

Agora ela surgiu, lá onde os convidados

Admiram seu não ousar mirá-los.

Quente o sol lá fora luz.

O oleoso suor da quente vida jaz

Na face do dia esta hora.

Louca alegria se contem no poder calado de cada cálida coisa.

 

XI

Enfeitai com festões, guirlandas e coroas

Os corredores e salas!

Que haja ao redor o alegre som de sino tinindo!

Que haja ecoante canto!

Vertei qual libação toda a alegria!

Gritai mesmo vós, pequenos, menina e rapaz

Cujo ventre ‘inda liso orna cândido

Um assexuado algo de sexo!

Berrai como se soubésseis que alegria é esta

Que aplaudis com tal deleite!

 

XII

Este é o mês e este o dia.

Ficar não deveis.

Andai logo, em grupos calorosos ide

Além das árvores, aonde a altura da torre

No amplo azul celeste prova a mensagem

De algo calmo, inefável.

Já agitados, murmurando alto, ide logo

À igreja! Verte-se o sol na ordenada turba,

E todos os olhos perseguem, envolvem a noiva:

Apalpam qual mãos seus seios e flancos;

Como o avesso das vestes rente à pele,

Envolvem-na em volta e cada prega preenchem;

As saias levantam pra bulir ou tentar

A tal fenda oculta em baixo;

E este nela pensarem espreita em gestos deles

E brinca nos olhares.

 

XIII

Não mais, chega de igreja ou festa, pois isto

É externo ao dia, como as verdes árvores

Na orla da trilha à igreja e a trilha mesma

Na volta da igreja, pisada sob sol mais alto.

Isto não faz parte, mais que um piso ou parede

Da real cerimónia do grande dia.

Até mesmo os convivas, e assim os que casaram

Têm isto apenas por corredores à cama.

Assim é tudo, que daqui ao ocaso

Se dará, obra obscura

Dos minutos, horas em sono vistas, e sonhadas

Atemporais e despercebidas.

As bodas e o regresso e a festa

É tudo prá todos névoa

Onde um vê os outros numa quente imagem vaga

De ébria emoção nas veias,

E rubra corrida transpassa seu ver e ouvir,

Grande ebrifesta de sonhos um no outro vistos,

Até que o intempestivo atropelo

Num quasi dorido ponto de insana alegria estanca.

 

XIV

O noivo anseia pelo fim disso, lascivo

Por ter estas tetas sorvendo em tormenta,

Tocar primeira vez nos pelos do ventre

E apalpar a labiada toca,

Fortaleza feita só pra ser vencida,

Pela qual ele sente tumescer e prurir o aríete.

A trémula alegre noiva sente todo o calor do dia

Neste inda enclaustrado ponto

Onde só sua mão de virgem noturnamente fingia

Ganhar vazio prazer.

E disso ‚ que irá murmurar a maioria

Sabendo qual arranque será;

E crianças ainda, que espiam com olhos atentos

Já ante vibram o saber da carne

E, homens e mulheres feitos, encenarão

O titilante líquido ato

Cuja amostra tentam em secretos cantos

Mal sabendo o quanto ainda é seco.

 

XV

Até vós, já velhos, que aqui como vindes

Ao passado, vertei vossa alegria

Na taça, e com os jovens bebei

Aquilo que vos faz ora lembrar

O que era amor quando o amor foi. (Pois mais

Não permite vosso invernal pensar).

Bebei com o dia quente à triste alegre noiva,

À pressa incontida do noivo,

À memória do dia em que éreis jovens

E, com altas odes entoadas

Ao longo da face do profundo em vós

Vos casastes e a noite viu

O dia entrar e vós inda arfáveis juntos

E ainda o desfalecente falo tendendo acima.

 

XVI

O que já importa os idos ou porvir?

Tendes a idade do amante, no prazer!

Dai toda a mente a este grande musculado dia

Que rompe qual corcel

O freio do Tempo, fazendo a noite vir dizer

Que a virgem sela já leva seu primeiro ginete!

Carne apertada, mordida; carne sugada, cingida,

Carne esmagada, oprimida,

Tais coisas inflamam vossa mente e tornam turvas

Vossa fala e face!

Raivai em relances nus até espantar

Vossa febre de deleite,

Relances como a odiar mentes e roupas

Que separam corpos!

Vossos membros estendei ao calor do dia fora

Pra senti-lo enquanto dura!

Pois sol intenso, quente terra, verde erva,

O fulgente reflexo de um lago ao longe,

E cada rubra imagem que fazeis da noite a vir,

Tudo é uma quente-contente unidade.

 

XVII

Num rubro surto da mente bacante que bate

Nas loucas têmporas qual ira-espanto,

Numa fúria que fere os olhos, no entanto

Torna as coisas mais claras, com aura em torno,

A inteira alma do grupo como um bêbado feliz

Oscila e salta do solo!

Sim, mesmo sendo gente simples bandeando-se

À igreja, da igreja, cortejo nupcial,

Contudo, sátiros e vastas ancas pagãs

Que em carne têsa se deleitam e tetas e panças,

E cujo curso, desembestando entre a folhagem,

Roça a ninfa oculta que quase teme,

Num invisível ímpeto, atrás, adiante

Do decente grupo correm, repletam de imagens quentes

As almas passivas, tais teias tecendo em torno,

Que o seu tumulto, tropel alto de tontos,

Faz a ondulada terra sair do sono ecoando

À lascívia de seus saltos.

 

XVIII

Io!Io! Já escorre o sumo do gozo-fúria

Pela trama dos corpos,

Que já mesmo ardem por despir-se

E fazer contra outra carne

A guerra que plena o ventre e põe leite

Nas tetas que um homem venceu,

Batalha feita com fúria para unir e ajustar

E não pra ferir ou matar!

Io!Io! Sede ébrios como este dia e hora!

Gritai, gargalhai e galgai

Com clamor os pensamentos, temendo

Que um sopro profiram de tempo ou morte!

Tudo agora é todo jovem, e pequenas dores

Que em veias plenas fremem

São envoltas em grande titilante prazer

Que sempre estanca antes que farte.

Tirai tudo da mente, salvo a carne que doa

O leite macho que faz vida!

Ceifai explosões de alegria qual erva o chão

De vossa inflada alma invadindo!

Fazei vosso grande cio regozijar disperso

Em riso ou voz,

Como se toda terra; quente céu, trémulo ar

Um forte címbalo fossem!

 

XIX

Fazei a grande hora flamenga inflamar-se!

Dos sentidos amputai todo o lazer!

Caia a golpes essa alegria, mesmo quando eles ferem

As mãos que fingem evitar!

Juntai sobre a cama tudo que vos chama

À nudez que buscais!

Rasgai, tirai, qual terra quem tesouro busca,

Quando a argola do cofre espreita,

Ideias que ocultam ideias dos atos do cio

Que este grande dia implora!

Parecem já todas as mãos tetas apertar

Como a querer que dessem sua seiva!

Já cada coisa parece com outra fazendo par,

Carne tesa carne tenra cobrindo

E pernas ásperas e glúteos tensos pra fender

Pernas brancas entre as quais se impõem.

Mas cada mente mescla meras imagens que só falam

Do dia, a forçar o amor à carga,

Do homem, na ânsia da posse sentida,

Da mulher, em ter homem sobre si,

Da abstrata vaga da vida clara chegando

À concreta praia dos corpos.

Mas dos prenúncios alguns o dia real se veste.

Já saias se alçam na sala dos servos,

E o ventre-estábulo lascivo

Se abre ao cavalo que entra a galope

Meio tarde, bem perto do jorro.

E agora mesmo o idoso conviva envolve

A rubra jovem num canto escuro à parte,

E aos poucos a leva a tocar sua carne excitada.

Vede quanto gosta, o coração em tumulto,

De sentir-se a manejar o distendido dardo.

 

XX

Mas tais são intentos ou promessas

Ou mero propósito de cio,

E tal é tesão pretensa ou sem futuro

Ou só pra acalmar tesão.

No vero ciclo do amor simula-se

O que, ah Natura, se quer!

Batalhai por realmente

Dobrar às rédeas da vida o corcel do desejo

E em amor vos unir pelo amor do fecundo amor!

Berrai! Urrai! Sede garanhões e touros, no atrito

Pra por no oco o seu sémen!

Ascendei ao carnal complemento que fará

Vossa jovem seiva freme-fluir

Às húmidas junções onde vos unis

Pra saudar a vindoura vida,

No semeado ventre que irá inchar assim

Que a prenhe curva da esférica terra renove!

 

XXI

E vós, que hoje casais, tomai tais instintos

Do inteiro grupo, por alusões

Que naturalmente tendes da Natura,

E vosso bom futuro enfrentai!

Lábios unidos, braços nus, sentidos seios, órgão potente,

Fazei bem vossa alegre obra noturna!

Mostra a eles coisas tais, oh dia da pompa do cio!

Deixe-os em tal tenção que instigue ao feito

Da carne, inevitável e natural

Como mijar quando o impulso impele!

Que se agarrem e se beijem

Se ajustem com natural engenho,

E deixa a noite vinda mostrar tais hábitos

Pois haja juventude!

Deixa-os repetir o enlace, verter e verter

Seu prazer, até não mais poder!

Sim, deixa que a noite vele suas repetidas

Cópulas no escuro, até o intuito mesmo, ardente,

Gastar-se e turbar, vindo o sono aos doridos corpos,

Murmurando os nomes um do outro,

Nos braços do outro cada um inda sonhe o amor

E algo dele prove!

E se acordarem, ensina-os a recomeçar,

Pois a hora já vai longe;

Até que os fundidos corpos, de ardor mesclados

À alegria, enlanguescem, enquanto, exaustas

Estrelas, céu pálido a Leste, tremulam

Onde luz a noite solve,

E num clamor de prazer, estalo da jovem vida,

Cálido o novo dia entre.

 

 

 

 

0 Respostas to “‘Epithalamium’ de Fernando Pessoa”



  1. Deixe um Comentário

Deixe um comentário