A arte de trabalhar a docilidade

 

O DRAMA DO PEQUENO PIERRE

( Carlos Campos, Janeiro de 2013)

(O quadro apresenta uma sala luxuosa com uma mesa ao centro. A mesa parece preparada para receber, tal o cuidado na sua ornamentação e no tipo de objetos que a preenchem. Duas figuras estáticas destacam-se pela diferença do seu tamanho relativo. Uma, aparenta ser uma criança agarrada a uma cadeira. A outra, apresenta-se de vestes cerimoniais, e tem um olhar magestático sobre todo o cenário. Um narrador imaginário tenta dar alguma consistência aos acontecimentos).

O pai de Pierre tinha uma meta, elaborada ao longo da sua ordenada existência, que era fazer do seu filho um sucedâneo seu à altura do êxito social conseguido. Quem o pode culpar? Os pais divisam nos filhos prolongamentos seus, nos campos das ideias, ambições e convicções, ao contrário das mães, mais ligadas aos segredos terrenos, vislumbram para elas o papel de educadoras ‘em profundidade’.

(A cena que se segue, define-se pois, na banalidade usual das relações entre um pai socialmente louvável,  e um filho voluntarioso a braços com a sua condição incompreensível, mas demasiado lúcido para a idade).

– Então Pierre, levanta-te! Agarra-te a qualquer coisa! A vida não é para quedas. Tens de te habituar a ter sempre alguma coisa à mão.

– Mas, meu pai, apenas estou a aprender a andar.

– E muito bem que já andas. Filho meu, tem de saber andar. De peito erguido, com bom porte, um cavalheiro de fino porte. A sociedade não me concedeu o simples privilégio de ser pai. Tenho de ter um filho à altura do que enxergo para mim. Muito trabalho antecedeu a tua chegada. A tua mãe, sim, foi um desafio sem precedentes. Nem sabes as complicações que tive com o teu avô.

O pai de Pierre apercebe-se que as ditas complicações, agora sanadas, absorveram alguns anos da sua triste existência. Convencer o sogro da sua capacidade empreendedora, para lhe dar uma quota na sua sociedade jurídica, tinha sido uma odisseia tremenda, com insinuações arriscadas, mentiras várias e, principalmente, com a demonstração da sua total subserviência às ideias e decisões do avô de Pierre. Mas, quem o pode culpar? Um homem tem de agarrar na vida as oportunidades que se vislumbram, e dar o seu máximo a caminho do êxito e do sucesso, mesmo que para isso se meta de entremeio um casamento. Este é o papel que está predestinado ao homem, é uma responsabilidade que transporta consigo desde muito cedo. As mulheres nunca entenderam este fardo dos homens para o sucesso social, elas preocupam-se, muitas vezes, em o compartilhar. Mas, olhemos mais de perto o diálogo de Pierre com o seu progenitor.

– Achas, que se eu me agarrar a esta cadeira consigo chegar à outra, mais longe?

– Claro! A minha presença dar-te-á sempre a segurança que precisas. Mesmo nos momentos em que te sintas desfalecer. Este, que está aqui, será para ti imprescindível. Povoará o teu universo como o céu abrange tudo. Vou aparecer nos teus sonhos com uma palavra de aconchego, vou ser a tua última referência, mesmo quando pensares que já não tens nenhuma.

– Mas, se calhar vou cair, aquela cadeira está ainda longe.

Perante a hesitação de Pierre, o pai lembrou-se da ladainha que outrora ouvira quando novo, e que lhe tinha permanecido na memória como referência para ação.

– Pois muito bem, eis chegado o momento da primeira lição. Quando tens um objetivo pela frente, não podes olhar a meios para o alcançar. Deves valer-te de todas as artimanhas para o conseguires. Só em última análise é que podes recorrer a mim. Eu sou a tua chance escondida, aquela que ninguém saberá que podes usar. E, mesmo que te acusem disso, negarás até ao fim. A tua muleta deve ser desconhecida de todos. Vá, avança para a outra cadeira!

– Vês! Estou quase a lá chegar. A tua presença é boa, de facto.

– Mas, se te fores embora, achas que vou conseguir? Pelo menos, não vês que eu falhei.

O pequeno Pierre sente um alívio imenso. Compreende o pai, a sua determinação em o ajudar, o seu empenhamento, embora lhe escape as razões que ele invoca. Sente que precisa de um apoio assim, determinado e incondicional. A sua situação, de há muito que lhe parece anormal. Pensa, mesmo assim, que o mundo lá fora é um objetivo longínquo e, para já, inacessível, mas terrivelmente apetecível. Se conseguir aprender a andar, talvez consiga transpor as portas e janelas, que são a sua fronteira atual. Já entendeu, que o tratam de uma outra maneira, que lhe falam como se estivessem a esconder alguma coisa. Não sai de casa, nem conhece outras pessoas como ele. Pensa que o mundo deve ser muito mais vasto do que lhe dão a entender. Há dias, junto da janela, vislumbrou os ziguezagues das andorinhas, tão pequeninas e pretas, mas tão ágeis e determinadas no caminho a seguir. Admirável, como se lançam dos seus ninhos no espaço aberto e desconhecido. Ficou absolutamente certo que o mundo não se resumia aos espaços curtos e decorados onde se movia normalmente.

– Bem, o falhanço não é para aqui chamado. Aliás, esse termo não é para usar nesta casa. Vais subir à cadeira, e tens que te sentar à mesa. E, desta vez, não quero hesitações.

– Sim, meu pai!

– A mesa parece estar tão alta. Achas mesmo que tenho de me sentar à mesa? Subir para a cadeira já não é nada fácil.

Pierre observa a mesa e tem um esgar de deslumbramento. Tudo cintila no seu campo de visão. É o fio dourado dos pratos, os reflexos dos copos e talheres, enfim, um mundo cintilante que nada fazia prever. A sua admiração transforma-se num bem estar até aí desconhecido. Mas isto tudo para quê’? Será que hoje alguma coisa nova se vai passar? Seguro de si, mas a muito custo, agarra-se à mesa e sente que a partir daquele momento nada poderá ser como dantes. Tem que fazer sentir a sua determinação por aquilo em que acredita e fazer ver que tudo tem de mudar. A sua condição não pode mais ser a mesma. Se o pai o quer fazer ficar na mesa até chegarem os convidados, isso não o assusta, quer é mesmo ter uma palavra a dizer, a toda a gente que vier. Então, não é ele próprio uma construção do seu pai? Terá de se submeter eternamente à sua condição de filho incapaz? Tudo isso lhe trespassa a mente, e tem a sensação que pode fazer vingar as suas convicções de filho do pai hospitaleiro, mesmo antes que cheguem os convidados.

Meu pai, como vês cheguei onde me querias ver, agora vou ficar por aqui, pois mais longe não posso ir. Tens que me deixar falar e apresentar perante toda a gente os meus desejos de vida futura. Nada pode continuar como dantes. Tens de me conceder uma forma de te agradar mas, ao mesmo tempo, continuar com a minha vida, mesmo que ela se te oponha. Eu quero ser independente de ti, e vou afirmá-lo hoje perante todos os teus convidados, mesmo que tu mo proíbas. Tem que ficar claro que, a partir de hoje, eu penso pela minha própria cabeça e vou tentar andar pelas minhas pernas, mesmo que tu não acredites. Sim, as minhas pernas vão deixar de ser uma preocupação para ti, eu vou arranjar uma maneira de prescindir delas, mesmo à custa do meu próprio esforço. Estas pernas que tu tanto me falas não serão mais uma preocupação para ti. Eu me encarrego de as fazer substituir. Falo com o avô, e ele há-de arranjar uma maneira de eu poder andar sem ser à custa dos teus ensinamentos, cheios de insinuações nefastas que no fundo me paralisam de pensar o que hei-de fazer. Tens, de facto, que te resignar à minha condição, e não me venhas com discursos sobre o social que te apoquenta. O social que fique de fora disto tudo. Ou sou eu a falar aqui à mesa, ou então tens que dar por perdido o tempo que gastaste comigo.

– Meu ingrato filho, atreves-te a por em causa tudo o que criei para ti? Ficas aí sentado e quieto até os convidados chegarem, e livra-te de estragar este momento há muito tempo planeado por mim e pela tua mãe.

– Não quero saber dos teus planos. Vou denunciar-te perante todos. Vou-lhes contar a maneira como não me deixas viver nem respirar, mesmo o ar bafiento e nefasto que paira nesta casa. Eu não quero mais continuar assim. Os convidados vão saber o que se passa comigo e o teu inimaginável culto das aparências. Pensas que eles não se apercebem que eu não posso descer desta mesa pelos meus próprios meios? Nem penses, desta vez vou pôr tudo a claro e não me importo das consequências.

(Estas palavras disparadas pelo pequeno Pierre percorrem o curto espaço que o separa do pai, e provocam um impacto insuspeitável na sua expressão que arde de raiva. O pai de Pierre, como que compelido por um turbilhão inesperado, atira a sua mão áspera e avantajada sobre o pequeno Pierre que ainda estupefacto não tem tempo de tomar consciência do que o atinge, e estatela-se no chão não sem primeiro rodopiar na cadeira que, por ser de madeira firme, não se desloca um milímetro. Pierre vê-se atirado para o chão e toma contacto com a carpete de sabor áspero. A partir daqui, não perde a consciência mesmo que esta lhe pareça apanhada desprevenida. Uma mancha escura arrasta-se pela carpete, Pierre tenta elevar-se e gesticula como se tentasse elevar-se).

É esse o teu destino ao me desobedeceres, a queda. E, agora, para te levantares vais ter de mo pedir ou então arrasto-te para fora desta sala e não tens o direito de te sentares à mesa comigo. Aqui, nesta casa, ou falas a minha linguagem ou ninguém terá o privilégio de te ouvir. Ainda por cima, um aleijado sem pernas, um dependente físico que não tem maneira de se afirmar, não pode reivindicar nada que não passe pela minha aprovação. Vais daqui para fora e não assiste ao jantar em minha honra.

Pierre sente-se levitar, e deixa de sentir aquele contacto incómodo que o impediu de atravessar o espaço que rodeava a cadeira. Ainda vislumbra a carpete de desenhos dourados com traços de azul cobalto, algo que o maravilhava anteriormente. Ergue-se com a consciência da sua situação inamovível, e pensa que  nada alterará a necessidade que tem de mudança. Atreve-se a sonhar naquela situação grotesca, e sente-se aliviado com os pensamentos de rutura que já há algum tempo o importunavam. Não precisa de pernas, de facto. Outrora sentia-se angustiado por não poder corresponder ao chamamento dos que o rodeavam. Pensava que lhes tinha de obedecer pois a sua condição era de total dependência. Agora, sonhava com o espaço lá fora, com o céu cerúlico que as andorinhas tentavam penetrar em voos verticais ascendentes, lançando-se depois em queda livre, como que ameaçando destruir-se na terra povoada pelas mais diferentes criaturas. Elas não precisam de pernas para nada, saboreiam o ar límpido e puro da manhã, e isso chega-lhes. Seria como elas, voando acima daquela realidade sórdida, sem pernas e sem o falso apoio do pai, andaria de outro modo.

– Podes expulsar-me, não te adianta. Os teus convidados afinal não me vão ouvir porque eu estarei longe quando chegarem. Tomei uma decisão, a partir deste momento não vou precisar mais das minhas pernas que tanto te apoquentam. As minhas pernas vão ser a minha imaginação, e sobre essa não tens qualquer influência. Andarei por aí, sem precisar das tuas carpetes douradas para me apoiar. Saberei tomar partido da liberdade que o sonho me dá. Não mais terás de me ensinar para onde devo ir. A partir de agora não existirão fronteiras para mim nesta casa. Eu poderei estar onde quiser, mesmo que não o queiras. O teu poder sobre mim acabou.

O pai de Pierre, transtornado, apercebe-se do ruído dos convidados que chegam. Não pode permitir que assistam àquela situação humilhante. O seu filho estendido no chão a vaticinar um futuro indesejável, que ele nunca mereceu. Um filho seu a destruir todos os seus sonhos, a revoltar-se contra ele. Impossível de admitir, acima de tudo na presença de toda aquela gente que o tem na máxima consideração. Tinha que tomar uma medida rápida e eficaz. Aquele cenário tinha de ser limpo e esquecido para sempre.

-Vais ver do que sou capaz contra a tua ingratidão. Vou fazer-te desaparecer definitivamente, vais deixar de existir para mim. És um proscrito, infiel, e de nada me serves a partir de agora.

(A tela desliza lentamente fazendo desvanecer a sala onde tudo se passou, sem que, involuntariamente, o espectador se incline na direção do seu limite, como que a tentar vislumbrar o que o pai de Pierre insinuou. Um pesado silêncio desce sobre as suas consciências, impondo uma decisão rápida sobre um dos lados da contenda. Pouco tempo sobra para isso. O cenário ressurge novamente com maior esplendor, a mesa preenchida pelos convidados, o pai de Pierre debaixo do foco de todas as atenções. Como pormenor fundamental do cenário, sobressai um quadro na parede. A figura de Pierre, com um sorriso resplandecente, a alegria espelhada no rosto, e uma atitude pouco habitual para quem o conhecia de perto. O pai de Pierre prepara-se para saudar os convidados).

– Meus amigos, lamento ter de vos receber nesta hora insuportável para mim, nesta ocasião em que perdi o meu maior tesouro na vida. Sim, o meu querido filho, a quem dediquei todas as minhas energias, o meu maior investimento. As minhas intenções sempre foram as de lhe propiciar todo o apoio possível para que singrasse na vida, apesar da sua condição nefasta que todos conhecem. Não sei o que lhe trespassou a mente, sei que num breve instante desistiu de ficar connosco e, só poderá ser, deixou-se tomar por uma ilusão doentia. Foi encontrado no jardim desta casa, mesmo por baixo da varanda desta sala, sem que alguém tenha presenciado o que sucedeu. Esta perda, para mim irreparável, é  incompreensível. Tudo isto é insuportável, quando augurava para ele, apesar da sua condição, uma vida feliz. A minha consternação é absoluta, e não sei como possa remediar o desperdício em terem-se deslocado a esta casa com os vossos honrosos propósitos. Tenho de anunciar que este nosso encontro não poderá ter lugar, a partir deste momento, pois faltam-me as forças para tal.

(A luz da sala esvai-se lentamente, apenas aumenta a intensidade do foco que incide sobre a imagem de Pierre. Ouve-se, como que em surdina, uma música de fundo que, na impressão mais imediata parece doutro mundo. Lentamente, sem que o espectador se deixe dominar a princípio, tomam forma as vozes maviosas de um coro indistinto)

-” Vai querido Pierre, toma conta da tua imaginação, ascende ao mais alto que possas, e traz-nos novas desse outro mundo. Mergulha neste espaço proscrito, trazendo a tua pureza de alma para esmagares a opressão em que vivemos. Ansiamos pela nossa libertação, necessitamos da aragem que nos trazes, ecos doutrora, quando o nosso ser se realizava em absoluto. Não queremos apenas viver, queremos sonhar como tu, queremos atingir a essência desse âmago luminoso, que é a beleza dos que escolhem. Vai por essas atmosferas infinitas, e pratica tudo o que a tua alma te indicar. Sem alma, apenas nos resta estarrecer por aqui, sem que nada aconteça de belo”. 

(A tela desliza lentamente, escondendo os que na sala do convívio olham para o espectador com ar circunspecto e assustado, como se alguma coisa lhes fosse alterar a sua condição perpétua de viventes estabelecidos).

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